A inter- relação de um olhar profissional e pessoal sobre algumas particularidades da prematuridade

Os avanços científicos e tecnológicos das últimas duas décadas associados com a melhora da assistência obstétrica e neonatal têm promovido um aumento significativo das possibilidades de sobrevivência de prematuros, em especial os que nascem com idade gestacional inferior a 27 semanas e com o peso inferior a 1000 g (Motta 2016; Ruas 2006; Canotilho 2005; Rugollo 2005). 

Segundo a Organização Mundial de Saúde (2006), parto prematuro é o nascimento antes de 37 semanas completas de gestação ou menos de 259 dias desde o início da última menstruação (DUM).  Quanto menor a idade gestacional, maior será a prematuridade do recém- nascido (RN) podendo ser enquadrado nas diferentes subdivisões: prematuro extremo (abaixo de 28 semanas); prematuro grave (entre 28 e abaixo de 32 semanas);  prematuro moderado (entre 32 semanas e abaixo de 34) e prematuro quase termo ( entre  34 semanas e abaixo de 37)- Motta, 2016-. Essas subdivisões são de extrema importância para o acompanhamento imediato e a longo prazo da criança, pois apesar de todos esses bebês serem classificados como prematuros, eles apresentam muitas necessidades e diferenças entre si, tais como o peso ao nascimento, a maturidade neurológica  e fisiológica, especialmente relacionada à visual, pulmonar, cardíaca, renal e intestinal (Motta 2016; Rossi, 2016). 

Em minha experiência profissional e pessoal em acompanhar o desenvolvimento dos prematuros após a alta hospitalar e dos meus dois filhos, -Maitê Maria, nascida com 23 semanas e 1 dia, atualmente com 6 anos  e Lucca, nascido de 32 semanas e atualmente com 2 anos e 8 meses-   percebo que por mais que a expectativa de sobrevivência e toda a compreensão conceitual sobre o que, de fato, significa prematuridade nessas ultimas duas décadas tenha melhorado significativamente, ainda existem muitos desafios e particularidades a serem suplantados e melhor compreendidos nos cuidados demandados para o desenvolvimento futuro desses bebês, assim como a promoção do acolhimento sócio- emocional e geração de suporte informacional para as famílias que enfrentam a prematuridade, em especial a extrema (Silveira et al., 2018; Motta 2016; Ramos, 2009;  Ruas e Gagliardo, 2016; Ruas et al., 2006; Gagliardo, Nobre e Carvalho, 1996). 

Não tem como negar a imensa preocupação que todo pai de prematuro extremo, que tenha passado por muitas intercorrências clínicas e permanecido muito tempo hospitalizado, sinta sobre as etapas, o ritmo e a qualidade do crescimento e desenvolvimento  global que o filho apresentará após a alta hospitalar -aspectos nutricionais, motores, sensoriais, cognitivos, afetivos (Ruas e Gagliardo, 2016). 

Nesses 16 anos de experiência profissional e 6 como mãe, venho percebendo que para os pais, várias preocupações e questionamentos podem aparecer não somente no momento em que seus filhos estão em Unidades de Terapia Intensiva, mas também em outros momentos como a primeira infância e a fase escolar.  Questões como: ¨meu filho será sempre pequeno?¨,  ¨meu filho sempre terá dificuldade em adquirir peso?¨, ¨tenho que corrigir a idade do meu filho até quando?¨,   ¨ele terá sequelas neurológicas? ¨, ¨quando e como ele irá adquirir alguns marcos importantes do desenvolvimento infantil, como andar e falar?”, ¨ele conseguirá aprender?¨,  ¨ele conseguirá se alfabetizar?¨,  “entre outras dúvidas e angústias que aparecem muito no diálogo entre pais e a equipe médica e terapêutica. 

Pessoalmente, diante do nascimento de minha primeira filha, por ser prematura extrema, diferentemente do meu segundo filho, minha preocupação inicial estava centrada em 3 aspectos: sobrevivência, crescimento e desenvolvimento. 

Em relação à sobrevivência, o prematuro passa meses em ambiente hospitalar para adquirir a estabilidade fisiológica e clínica.  Experiencia agressões e invasões em seu pequeno corpo, como cateteres, tubos e sondas para garantir-lhe uma sobrevivência digna, sendo que alguns bebês passam por procedimentos cirúrgicos, tal como o fechamento do canal arterial (Rossi, 2016). 

Em todo esse processo de hospitalização, o bebê tem sensações difíceis, tais como as dolorosas, vivenciando situações muito diferentes das esperadas para um bebê a termo, como sentir a textura do seio da mãe, o gosto do leite, o cheiro da mãe, ter o contato pele a pele, sentir a temperatura da água do banho, ouvir os ruídos ambientais, perceber a textura da roupa em seu corpo, receber e participar de muitas experiências afetivas entre mãe/ pai e filho, ter contato com brinquedos e objetos, vivenciar momentos lúdicos com os pais/ irmãos e  entre outras vivências que possibilitam a expressão de quem é, e, como é aquele recém- nascido que acaba de chegar ao mundo (Canotilho, 2005; Ruas e Gagliardo, 2016). 

O prematuro extremo, ao contrário, terá todas essas experiências de uma outra forma, em um outro tempo, obedecendo a um outro ritmo e a uma outra frequência. O contato com todas essas sensações/vivências que despertam o desejo, o bem estar e a curiosidade natural de toda criança pequena só podem começar após a estabilidade clínica. Essa diferença de ‘exposição’, da qualidade, da quantidade e da maneira como os estímulos ambientais são oferecidos, recebidos e processados é uma das explicações científicas de porquê os prematuros extremos terão outras características ao longo do seu processo de desenvolvimento após a alta e a longo prazo (Linhares, 2003, 2004; Ruas e Gagliardo, 2016).  

Em relação ao crescimento, segundo aspecto que sempre me preocupou, sabe- se que os prematuros extremos, com peso menor do que 1000 g são privados de um período critico de crescimento intra uterino acelerado, característico do terceiro trimestre de gestação. Acrescido a isso, a luta travada pela sobrevivência, como já citada anteriormente, implica em um aumento dos gastos energéticos em um bebê que enfrenta sérias restrições na oferta e/ ou no aproveitamento dos nutrientes (Zang, 2019; Demartini, 2011, Rugolo, 2005). Essas particularidades explicam o motivo da natural e esperada perda de peso para a equipe médica. Porém, mesmo que a equipe explique o quão normal é essa perda de peso, especialmente nas 3 primeiras semanas de vida, os pais de prematuros extremos se angustiam e muito com cada grama perdida nesse início da vida (Rugolo, 2005; Demartini, 2011). Nenhuma mãe e nenhum pai está preparado  para ter um filho tão pequeno e muito menos para acompanhar a perda de peso, tão normal para a ciência, mas que transforma os nossos bebês em seres menores ainda.   

Nos grupos de acolhimento aos pais de prematuros extremos, verifico que muitos deles, mesmo após a alta hospitalar, são traumatizados com a dificuldades que essas crianças enfrentam para crescer, enfocando o ganho do perímetro cefálico, do comprimento e do ganho de peso, além da harmonia entre esses três aspectos.  Um dos aspectos que acalmam os pais é saber sobre a correção da idade gestacional e que, frequentemente, a maioria dos prematuros extremos atinge seu canal de crescimento entre os percentis de normalidade nas curvas de referência até os 2-3 anos de idade. Geralmente, o catch-up (recuperação do crescimento) ocorre primeiro no perímetro cefálico, seguido pelo comprimento e depois pelo peso (Rugolo, 2005; Demartini, 2011, 2016, Harel- Gadassi et al., 2018; Villar et al., 2018; Zhang et al., 2019). 

Cientificamente, a idade corrigida traduz o ajuste da idade cronológica em função do grau de prematuridade. Considerando que o ideal seria nascer com 40 semanas de idade gestacional, deve-se descontar da idade cronológica do prematuro as semanas que faltaram para sua idade gestacional atingir 40 semanas: idade corrigida = idade cronológica  – (40 semanas – idade gestacional em semanas)- Rugolo, 2005; Demartini 2011, 2016; Harel- Gadassi et al., 2018; Villar et al., 2018; Zhang et al., 2019-.  

Os autores supracitados, acrescidos às recomendações da OMS (2006), demonstram a importância em corrigir a idade gestacional na avaliação do crescimento e do desenvolvimento até os 2 anos de idade, a fim de obter a expectativa real para cada criança, sem subestimar o prematuro ao confrontá-lo com os padrões de referência. Sendo que, embora ainda existam controvérsias, vários  pesquisadores em prematuridade recomendam corrigir a idade dos prematuros extremos até os 3 anos (Rugolo 2005; Demartini, 2011, 2016; Harel- Gadassi et al., 2018 e Zhang et al., 2019). 

Quanto à avaliação do crescimento, este ajuste é necessário para reduzir a variabilidade que existe devido ao rápido crescimento no último trimestre de gestação e desaceleração do crescimento após o termo, possibilitando, então, avaliação mais acurada das taxas de crescimento pós-natal e comparação entre os diferentes grupos de crianças (Guo et al., 1997 e Rugolo 2005). 

Já para um correto diagnóstico do desenvolvimento a longo prazo- meu terceiro ponto de grande preocupação como especialista e mãe-, especialmente o neurológico, é fundamental a correção da idade em função da prematuridade nos primeiros anos de vida e um acompanhamento atencioso ao longo da vida escolar e adolescência (Rugolo, 2005; Motta, 2016; Harel- Gadassi et al., 2018; Sobaih, 2018;Villar et al., 2018; Gould, 2019; Zhang et al., 2019). 

Sabe- se que o comprometimento do desenvolvimento neurológico, sensorial, cognitivo além de dificuldades emocionais, sociais e educacionais é uma das principais preocupações dos pediatras e terapeutas infantis e infelizmente pode ser elevado, especialmente para os prematuros nascidos antes de 27 semanas, quando cerca de 25% a 30% deles podem apresentar sequelas mais graves, tais como a ocorrência  da paralisia cerebral, cegueira e surdez ( Ruas, 2006; Correia, 2014;  Demartini 2016; Motta, 2016; Sobaih, 2018;  Zozaya, Diaz e Saenz de Pipaón, 2018). 

Felizmente, existem muitos casos de prematuros extremos sem sequelas graves. Porém, mesmo assim, diante do período de internação e todas as necessidades apresentadas, podem, sim, apresentar outras características ao longo do desenvolvimento infantil, especialmente quanto à aquisição de alguns comportamentos/marcos específicos dos primeiros anos de vida e primeira infância (Gagliardo, 1997;  Canotilho, 2005; Ruas, 2006; Demartini, 2016; Ruas e Gagliardo, 2016). Mesmo que façamos a correção da idade gestacional, a qualidade e a frequência de alguns marcos/etapas específicas de cada idade podem se diferenciar quando comparamos bebês a termo e os prematuros extremos.  (Margotto, 1995; Linhares, 2003, 2004). Além disso, os prematuros podem pular algumas etapas ‘típicas’ do desenvolvimento infantil, como, por exemplo, sentar sozinhos, sem antes terem rolado de um lado para o outro, ou darem os primeiros passos e, depois engatinharem, entre outros exemplos (Ruas e Gagliardo, 2016). 

Justamente, por essas particularidades que a prematuridade apresenta é que  o acompanhamento a longo prazo de prematuros extremos tem sido alvo de muito interesse não somente pela classe médica, mas também pelos psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e fonoaudiólogos (Correia et al., 2014; Ruas et al., 2006; Gagliardo, Gabbard e Gonçalves, 2002; Gagliardo, 1997, 2003). Toda a equipe da saúde deve compreender as especificidades da prematuridade, especialmente da extrema, a fim de contextualizar o ritmo e a qualidade do desenvolvimento neuropsicomotor, emocional e social ao ambiente e experiências já vividas pela criança.  

Além disso, acredita-se que se as relações interpessoais do bebê com seus pais são permeadas por afeto, elas se fortalecem e permitem expressar as potencialidades,  dificuldades e as diferentes estratégias do dia-a-dia que podem favorecer o desenvolvimento global e o acompanhamento das etapas previstas nos primeiros anos de vida, por meio de experiências ricas e saudáveis para pais e filhos (Gagliardo e Ruas, 2016). 

Pessoalmente, acredito que é justamente diante da compreensão de algumas particularidades da prematuridade extrema, seguida de uma potente inter relação entre pais, pediatra e, se necessário equipe terapêutica,  é que iremos impedir os diagnósticos errados ao longo da trajetória do desenvolvimento, desde os muito precoces até os muito tardios, especialmente nos primeiros anos de vida dos prematuros.  

Um grande abraço, Teresa Ruas. 

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