As cicatrizes de uma cesariana podem e devem ser uma eterna lembrança do quanto somos/fomos resilientes enquanto gestantes de alto risco
Hoje gostaria de ressaltar a potência sagrada que existe em cada corpo feminino, mesmo que esses corpos tragam especificidades e possibilidades diferentes entre as mulheres, especialmente para as gestantes de alto risco e/ou mulheres que enfrentam longos tratamentos de fertilização.
Sabemos o quanto os corpos femininos carregam formas, curvaturas, órgãos, cheiros e potências muito específicas e que podem dizer e muito sobre a vitalidade feminina. São corpos que sangram, que ovulam, que possuem características tão peculiares para se transformarem em ‘abrigo’ no momento da gestação, parirem e alimentarem a própria cria. Quanta vitalidade e potência em corpos femininos! E, frequentemente, não como uma obrigatoriedade ou norma social, quando nos apropriamos dessa nossa vitalidade visceral e sistêmica nos sentimos mais mulheres e também mais conscientes do quanto somos fortes. Afinal de contas, ter um corpo transformado para gerar mais vida é sinônimo de muita fortaleza!
Porém, alguns corpos, assim como o meu, possuem tantas especificidades que fogem do dito ‘normal’ que necessitam ser ressignificados para que a força ‘do feminino’ não se isole e não perca o seu brilho e sua essência natural. Úteros, ovários, trompas com características diferentes, mas que, mesmo assim, continuam expressando a força e a vitalidade feminina.
E mesmo possuindo a real consciência das especificidades de nossos corpos femininos, muitas mulheres de alto risco, assim como eu, elaboraram durante anos a possibilidade de gerar, parir, amamentar… Possibilidade, essa, marcada pelo desejo em maternar e vivenciar as alegrias e as reais dificuldades da maternidade. Portanto, um desejo que, muitas vezes, fez um diálogo intenso e profundo com o corpo feminino. Um corpo que esperava ansioso por vivências únicas…
Porém, o desejo de muitas dessas mulheres ainda continua latente em suas mentes e corações. Os seus corpos, assim como o meu, não puderam residir tais desejos até o fim. E afirmo que não puderam. Porque ‘querer’ e ‘desejar’ é muito diferente de não poder passar por…
Alguns corpos femininos necessitam de cesarianas de emergência para se manterem vivos. Alguns corpos necessitam de cesarianas de emergência para continuarem expressando a sua essência e existência feminina. Corpos que não sentiram as dores do parto, corpos que enfrentaram horas e horas de cirurgia e que carregam cicatrizes imensas em suas pelves por desejarem e lutarem, antes de tudo, pela manutenção da vida. Eu mesma enfrentei 8 horas de cirurgia/ cesariana para que o meu corpo feminino e minha filha pudessem ter as melhores condições para a própria sobrevivência. A minha cesariana tem sinônimo, sim, de vida e de muita resiliência!
E o meu obstetra e toda a sua equipe — foi necessária uma equipe grande, principalmente, para garantir a vida de minha bebê com 23 semanas gestacionais e 1 dia — apesar de todos os procedimentos técnicos e de alta complexidade necessários naquele contexto, conseguiram conversar comigo com calma, mantendo a voz baixa na comunicação, conseguiram orar e pedir a luz divina para iluminar toda a equipe, conseguiram, todos, me darem as mãos, antes de iniciarmos a cirurgia, enquanto finalizavam todos os exames das minhas condições fisiológicas e conseguiram dizer palavras de esperança a uma gestante de alto risco e que também corria risco de vida.
E apesar de sentir um imenso sofrimento que dilacerava o mais íntimo de minha essência feminina, ou seja, o ‘meu feminino’, justamente em não conseguir gerar normalmente, em não conseguir parir naturalmente… mesmo que o desejo mais íntimo fosse muito diferente do vivenciado, fui extremamente acolhida por uma equipe toda vestida e paramentada para uma cirurgia de alto risco.
Parece difícil, mas ciência e afeto podem e devem caminhar sempre juntos e unidos. Uma equipe médica, caracterizada pela alta complexidade técnica, também pode e muito olhar e enxergar as diferentes realidades e possibilidades de um corpo feminino. E mais do que isso… podem e devem contextualizar a necessidade e a especificidade de cada indivíduo, de cada história e, portanto, de cada mulher.
Pois para mim, humanização é exatamente isso! Ações, atitudes e comportamentos que buscam pela contextualização do indivíduo, do seu entorno e de suas reais possibilidades enquanto mulher. Sabemos, felizmente, o quanto é esperado que a maioria das mulheres consigam gerar, parir, amamentar, de forma normal e o mais natural possível. O parto normal e a amamentação exclusiva devem ser priorizados. Cesarianas desnecessárias não devem ser realizadas. E os movimentos pela humanização lutam por isso! Eu também faço parte da massa que luta por esse ideal. Porém, também faço parte da massa minoritária que não conseguiu vivenciar, naturalmente, todas as experiências esperadas de um corpo feminino. E essa minoria das mulheres precisam ter a consciência de que nem por isso deixaram de carregar em si a força do corpo feminino, mesmo que os seus úteros não tenham entrado em trabalho de parto ou tenham tido a necessidade de uma FIV, fertilização in vitro.
Penso que a batalha pessoal de cada uma de nós e as nossas cicatrizes devem abrilhantar e muito a nossa existência enquanto mulheres. E os nossos problemas para a fertilidade devem expressar muito respeito diante de tanta resiliência emocional e afetiva que as mulheres que não se enquadram no que é “esperado”, necessitam desenvolver, até mesmo para continuarem existindo e sentindo como tais. Afinal de contas, todos os corpos, independente de suas reais possibilidades de expressão, carregam a energia sagrada do feminino. E o respeito diante de tudo isso são os principais fundamentos do movimento pela humanização.
As nossas cicatrizes de uma cesariana podem e devem ser uma eterna lembrança do quanto somos/fomos resilientes enquanto gestantes de alto risco. As cesarianas sempre serão necessárias em muitos casos de gestação de alto risco. E graças a Deus, podemos contar com o auxílio de técnicas e procedimentos de alta complexidade para a manutenção da vida de mulheres e bebês.
E hoje como uma mulher que carrega uma história em que gerar, parir e amamentar foram tão diferentes do desejado, tento, a cada dia, recuperar a energia vital e sagrada de partes femininas que somente nós mulheres temos. Tento recuperar a energia vital do meu útero, do meu ovário, das minhas trompas, dos meus seios, como uma forma fidedigna de dizer o quanto me admiro enquanto uma mulher que busca o significado diário de minhas ações cotidianas nos diversos papéis e funções desempenhadas.
Espero que a cada dia possamos cultivar o respeito por todas as mulheres em suas diferentes características e possibilidades no existir feminino. Respeito pela lindeza e sutileza de cada corpo, de cada experiência e de cada vivência em gerar vida e acompanhá-la com dedicação e amor. Talvez e, somente, exercendo o respeito é que iremos conseguir, realmente, entender o verdadeiro significado do empoderamento ao feminino.
Um grande abraço, com emoção, Teresa Ruas, Maitê Maria e Lucca
Texto da coluna Vida de Prematuro, da Revista Crescer.