A Birra e o Desenvolvimento Infantil: um texto para pais e profissionais de saúde e educação

Olá a todos! Espero que todos estejam bem, apesar de todas as dificuldades que o isolamento impõe às famílias, especialmente às crianças pequenas em seus primeiros anos de vida.

Pensando exatamente nas dificuldades e comportamentos que podem surgir com mais frequência e intensidade nesse período de isolamento social que decidimos compartilhar com vocês, pais e profissionais, um texto que foi publicado pela Teresa Ruas em 2019 em uma série de livrinhos/ guias destinados a pais de prematuros.

Nesse guia, ela pontua alguns aspectos importantes sobre a BIRRA, com o principal objetivo de demonstrar o porquê esse comportamento é tão frequente em crianças pequenas, oferecendo também algumas dicas em como lidar com comportamentos que, muitas vezes, tiram a paciência dos pais, não é mesmo?

Portanto, ao lerem esse texto, toda equipe do prematuros.com.br deseja que você, pai ou profissional, compreenda o quanto a Birra é esperada em todo desenvolvimento infantil, podendo ser mais acentuada em situações de estresse, mudanças de rotina, como as vividas nesse atual momento. O intuito de compartilhar essa publicação de Ruas (2019) é de acalmar muitas famílias de crianças pequenas no atual cenário. Sintam-se todos abraçados, com muito carinho, equipe prematuros.com.br

Abaixo seguem algumas partes da publicação de Ruas, TCB: A Birra e o Desenvolvimento Infantil, 2019 e com algumas reflexões para a atual realidade.

A Birra e o Desenvolvimento Infantil

A literatura sobre o desenvolvimento nos primeiros anos de vida verifica o quanto a birra é um dos comportamentos mais frequentes no dia a dia de crianças pequenas, sobretudo naquelas com idades compreendidas entre os dezoito e os quarenta e oito meses, com maior incidência entre os dois e os três anos de idade.

Sabe-se o quanto a criança a partir de seus 2 anos de idade começa a expressar uma outra qualidade de autonomia e independência, especialmente relacionada ao seu desempenho motor.  Se no primeiro ano de vida, essa mesma criança ainda dependia de um adulto para levá-la aos diferentes lugares, com 2 anos já consegue caminhar e chegar em diversos ambientes, sozinha. Na ótica do desenvolvimento infantil, esse ganho de independência em ir e vir de acordo com os desejos e condições da própria criança, a transforma em um ser ativo e que deseja alcançar e manter todas as suas vontades, o tempo todo.

E em contrapartida a essa intensidade emocional de desejar alcançar tudo o que almeja, uma criança nos seus primeiros anos de vida, ainda não adquiriu:

  • o desenvolvimento das áreas do cérebro responsáveis por controlar as emoções,
  • a maturidade emocional para se colocar no lugar do outro,
  •  mecanismos psicológicos para lidar com a frustração ou com o imprevisto,
  • capacidade para perceber o futuro e adiar as suas vontades,
  • uma linguagem verbal desenvolvida para elaborar um diálogo,
  • competências emocionais para resolver problemas e
  • compreensão das regras, normas e limites sociais.

Portanto, um simples “não” e/ou uma pequena frustração pode desencadear um episódio de birra, sendo caracterizado por um choro descontrolado, gritos, pontapés, rigidez ou extensão dos membros e do tronco.  Além disso, a criança pode bater nos outros, bater com a cabeça no chão ou nas paredes, morder-se, atirar-se no chão, espernear, fugir, atirar objetos, suspender a respiração ou desencadear o vômito.  Ou seja, uma simples frustração em crianças pequenas pode gerar uma vivência emocional que pode até ser breve, mas muito intensa, com sinais claros de impulsividade e explosão de emoções descontroladas, em uma tentativa corporal incessante para chamar a atenção do adulto, como uma forma de comunicá-lo que ela ainda almeja obter o seu desejo. Agora, vamos tentar imaginar toda essa vivência emocional de frustração de uma criança pequena em um cenário de isolamento social e mudanças bruscas de rotina?

A boa notícia é que estes comportamentos supracitados e que deixam os pais e os principais cuidadores à flor da pele, não são motivos de alarme ou de grandes preocupações, apesar de ser muito desagradável ver um filho em um cenário clássico de birra. É importante lembrar que as birras são formas de expressão das emoções e sentimentos, provenientes de um cérebro em desenvolvimento e de uma capacidade psicoafetiva ainda muito imatura. Por outro lado, os estudos verificam o quanto a birra é também um sinal claro de crescimento psicológico, exatamente por existir uma criança que expressa saber o que deseja, mesmo diante de sua imaturidade emocional. Portanto, ao contrário do que muitos pais pensam, o sinal de alarme, especialmente nos três primeiros anos de vida, deve ocorrer diante de um cenário de ausência total de birras, pois a falta das mesmas pode ser um indicativo de dificuldades no desenvolvimento da subjetividade infantil. Essa informação, acalenta o nosso coração, não é mesmo? Porque de fato, as birras podem se intensificar nesse momento de isolamento social e toda essa intensidade comportamental ser uma maneira de expressar o quanto está difícil tudo isso para uma criança pequena e em pleno desenvolvimento psicoafetivo.

 Verifica-se que a criança, ao longo do seu desenvolvimento e por meio de limites e regras que os pais e o contexto social oferecem a ela diariamente, vai aos poucos compreendendo que as suas vontades não, necessariamente, irão ocorrer da forma e no tempo desejado. E aqui cabe mais uma reflexão: em tempo de coravírus as crianças são obrigadas a obedecer uma certa regra. O desejo de ir ao parquinho não poderá ser aceito, por exemplo. E nós pais precisamos de muita paciência para dialogar isso com os nossos filhos, mas também, ao mesmo tempo, estamos tendo uma grande oportunidade em demonstrar na vida real que os limites existem, por mais difíceis que possam ser. Puxa! Uma grande experiência de resiliência para nós pais e nossos filhos…

 Pode ser que aos poucos, algumas crianças comecem a tolerar melhor as frustrações, os imprevistos e a perceber o quanto é necessário obedecer e seguir regras e normas que fazem parte do seu dia a dia. Portanto, é importante compreender a birra como uma ocorrência normativa e que faz parte de todo processo de desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida, que irá desaparecer com o tempo, justamente diante de uma inter-relação entre uma maior maturidade neurológica e emocional da criança e a experiência diária da mesma com os limites e normas que os pais e o contexto social oferecem à ela em suas relações socais e ambiente. E tudo bem se no contexto atual, o nosso filho estiver com muito mais birra do que antes… exatamente porque a carga de frustração pode estar bem maior do que ele estava acostumado a vivenciar. Afinal de contas ele não pode ir à escolinha, encontrar os avós, os amiguinhos, ir ao parquinho, correr e pular em espaços abertos e com pessoas e entre tantas outras proibições. Se até nós adultos estamos mais furiosos, sem paciência e ansiosos frente ao isolamento social, imaginem as nossas pequenas crianças e em pleno desenvolvimento emocional?

Outro sinal de alerta entra aqui também, caso a criança esteja crescendo e não demonstrando uma maior maturidade emocional, diante da diminuição da frequência e qualidade das birras, expressando alguns problemas de comportamento, dificuldades para dormir, ansiedade, agressividade, impulsividade, dificuldades na socialização e problemas de atenção no contexto domiciliar e escolar. Nesses casos, o pediatra deve ser informado para que o melhor acompanhamento seja destinado a essa criança.  Mas vamos dar uma maneirada nesse período de isolamento, porque muitas crianças podem estar apresentando vários desses comportamentos supracitados, ok?  

Já em um cenário com os típicos comportamentos de uma birra, a primeira coisa que os pais devem fazer é respirar fundo, tentar manter a calma e acreditar na educação que estão oferecendo aos seus filhos. Os estudos verificam que uma vez iniciada a birra, não vale a pena chamar a criança à razão, ou começar a gritar com a mesma demonstrando que ela será castigada ou penalizada por aquele comportamento. O mais aconselhável é que os pais atuem logo no início de um episódio, antes que a criança perca todo o seu equilíbrio emocional, como, por exemplo:  desviando a atenção do filho para uma outra atividade, levando-o para um outro local mais tranquilo ou acolhendo-o no colo. E bora lá respirar bemmmm fundo nesse período de isolamento social…

Porém, a prevenção da birra pode poupar os pais de muitas tensões. Por isso, é muito importante que os pais verifiquem situações de sono, doença, fome, estímulos ambientais em excesso, cansaço e/ou agitação por parte da criança. Estas situações supracitadas são um gatilho para o início de uma clássica e incontrolável birra. No entanto, se os pais acharem que o nervosismo e a agitação da criança não são provenientes de nenhuma condição acima citada, nada como utilizar a força do afeto, de um abraço bem apertado e da relação que os pais têm com o filho para contarem uma história infantil ou darem um passeio rápido e, assim, minarem um possível início de birra. Vamos de Abraços e mais abraços bem apertados nesse atual momento.

Mas se as birras estiverem muito frequentes, os pais precisam fazer um grande exercício de autodomínio, sendo necessário: 

  • manter a calma, como afirmado acima,
  • não responder emocionalmente para a criança, com duras palavras, gestos, olhares ou rigidez corporal,
  • acolher a criança em seus braços, com ou sem objetos afetivos, para evitar que o filho se machuque,
  •  levar a criança para um local onde possa dar-lhe apoio e conversar tranquilamente, sem palpites de outras pessoas,
  •   dizer à criança que não voltará ao local ou às atividades enquanto não se acalmar,
  •  esperar algum tempo até a criança se reorganizar e
  •  explicar calmamente que os pais estão esperando que a criança se acalme e, se necessário, até dizer que vão contar até um determinado número, para que até lá tudo esteja resolvido.  

Após diminuir o nervosismo da criança, é o momento certo e o mais eficaz para iniciar o diálogo entre pais e filho. Da mesma forma que é importante entender a frustração da criança e tentar ressignificar os seus sentimentos, é importante também demonstrar o quanto os pais não ficaram satisfeitos com os comportamentos que caracterizam a birra. Por mais difícil que possa parecer para os pais, ser firme, objetivo e claro é um dos caminhos mais fáceis para se manter um ¨diálogo¨ com uma criança pequena. Como as áreas do cérebro responsáveis por manter a atenção também estão imaturas, conversas longas e com frases extensas não são a melhor estratégia. Outro aspecto muito importante é a manutenção do trato feito com a criança. Uma vez pontuado o mesmo, não é indicado que os pais voltem atrás em nenhuma decisão realizada e já dialogada com o filho.  

Apesar de alguns pontos expostos e discutidos pela própria literatura em desenvolvimento infantil, infelizmente não existe uma receita infalível para as birras. Tudo depende de como a criança está naquele momento, da sua personalidade, da idade e da própria situação. Existirão momentos com menos frequência de birras e outros com episódios mais intensos e mais frequentes. Não se incomodar com que as pessoas pensam quando ocorrem as birras em locais públicos é um grande caminho para manter a saúde mental dos pais. Comparações com outras crianças e culturas também não precisam ser feitas. Cada família tem a sua conduta, os seus valores e as suas convicções. Pais que ficam comparando os seus filhos com outras crianças tendem a ter mais estresse emocional e menos confiança em seus atos. Portanto, confiar na educação e no amor que estamos dando aos filhos é também essencial para enfrentar essa fase clássica da birra e tão normal em qualquer desenvolvimento infantil. Por último, os pais não podem se esquecer que educar os filhos e ensinar que nem todos os seus desejos serão cumpridos é uma tarefa árdua, penosa, mas extremamente recompensadora. Portanto, nada de culpa e muitas exigências nesse período, ok? Vamos confiar que o nosso amor pelos nossos pequenos é o melhor remédio para acalmar os ânimos nesse período tão difícil que estamos vivendo… e vamos que vamos!

Referências Bibliográficas

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